terça-feira, 2 de agosto de 2011

Sobre o crack e gente invisível

Dario de Sousa e Silva Filho *


No início da década de noventa a imprensa se perguntava como o crack não chegava ao Rio de Janeiro. A cidade já era então tristemente famosa pela disputa entre grupos armados de narcotraficantes diariamente repercutida nos noticiários. A droga é um subproduto da cocaína obtido da mistura de sua pasta com bicarbonato de sódio. Trata-se de pedras que são queimadas e inaladas e que tem baixo custo (cerca de R$3,50 por pedra já nos anos 90). O efeito é mais intenso que o da cocaína. O crack age rapidamente, vicia e debilita também com velocidade. Mas o tráfico organizado de drogas impedia sua ampla distribuição no Rio de Janeiro. O investimento do crime-negócio na época era na cocaína e na maconha de pureza e custos variados, embora fossem drogas de grande aceitação em todas as classes.

No final da década de 90, o crack ganhou as ruas do Rio. Inicialmente seu uso estava restrito à população de rua (como o era em outros centros urbanos) e à população jovem das favelas. Era a expansão da estratégia do narconegócio que já então perdia espaço para as organizações criminosas de milícias que exploravam tv a cabo, extorsão e ágio sobre botijões de gás vendidos nas favelas. Se uma política pública de segurança não conseguira eficazmente conter o tráfico armado, a competição pela exploração dos moradores das favelas o fez. Setores da imprensa que antes estavam intrigados com a ausência de crack no Rio chegaram a ver com otimismo o fenômeno das milícias. E deixaram de perceber que o crack chegara ao Rio para manter o capital de giro do narconegócio. A estratégia era perversa, sobretudo por que os traficantes sabiam que os usuários de crack eram os invisíveis da sociedade. No início, nas favelas da Zona Sul, os traficantes obrigavam que meninos de rua e usuários da comunidade consumissem a droga dentro dos limites da favela. O consumo era intenso. Mas não ostensivamente visto. Com o tempo, as “cracolândias” ocuparam espaços liminares sob a mesma capa de invisibilidade da favela: Arredores de linhas de trens, ruínas das fábricas abandonadas no empobrecido subúrbio da Leopoldina. A atual ausência de uma rede eficaz de atendimento a dependentes químicos é o resultado dessa invisibilidade social e política que foi estratégia de negócio e efeito continuado da naturalização da desigualdade.

Hoje o problema divide ativistas e juristas sobre a forma de atendimento ao usuário. Há quem defenda a internação compulsória _ que sem a já referida rede de clínicas seria meramente uma cortina de fumaça para a opinião pública, no entendimento de outros segmentos. Como herança de políticas ruins e um arraigado desleixo da sociedade contra ela mesma, o crack chega a outras classes e deixa de ser um problema exclusivo dos mais pobres. E abre espaço para drogas ainda mais baratas e destrutivas como o Ox, subproduto da cocaína, com efeito ainda mais rápido e viciante, que pode ser fabricado facilmente sem grandes recursos. E em qualquer lugar. Hoje, a cegueira que permite o espaço ocupado pelo narconegócio multinacional parece mais difícil de curar que os dependentes químicos de crack.

* Professor do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais do IFCH/UERJ/Consultor da Rummos e Professor Visitante da Università di Roma II - Tor Vergata Centro di Ricerche Economiche e Giuridiche

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